Maria Amélia telefonou para os filhos de sua cobertura, ao lado do Meridién, ontem, ao meio-dia. Deseja almoçar com eles, domingo, no Saint Honoré, para comemorar a Páscoa. Sabe que os filhos gostam de salmão marinado e lagosta regada a vinho francês. Antes, porém, fará a entrega dos chocolates encomendados na Godiva, os mais gostosos e bonitos, sem dúvida.
O cabelereiro virá atendê-la, hoje, depois da sessão de ginástica e massagem. Também a manicure e a modista passarão pelo seu apartamento à tarde. Ufa, resmungou Maria Amélia. Sua agenda está lotada. Quantos compromissos assume quando está no Brasil. Em Paris tudo é muito mais tranqüilo. Afora os jantares e recepções elegantes, não há muitas preocupações.
Aqui, prefere não andar a pé. Nem mesmo faz o passeio no calçadão. Amanhã, irá de casa para o restaurante sem olhar para os lados. Também, com tantos mendigos, tanta gente molambenta, prefere mesmo o carro com vidro fumê, bem escuro, que evitam aqueles olhos famintos devorando suas belas roupas e jóias.
Seguranças, já tem dois, e seu edifício contratou outros três para fazerem a ronda, dia e noite, evitando qualquer surpresa desagradável.
Ali ao lado do prédio, sob uma marquise, Joana ouve o filho de treze anos avisar: “Mãe, não aguento mais dormir sem jantar e acordar e não tomar café. Vou roubar”.
Ele acordara há pouco, com a sirene da polícia apitando para ordenar o trânsito em Copacabana, às sete horas.
Perto dela, outras mulheres e crianças também se levantam, dobram e juntam num canto os pedaços de papelão usados durante a noite para se protegerem do chão frio.
Alguns fazem o ritual matutino e lavam o rosto num resto de água guardada do dia anterior.
Leite quente? Nem pensar. “Se a gente fizer fogo aqui, o pessoal chia”.
Joana nem se lembraria que domingo é dia de festa, não fossem os ovos de Páscoa, lindos, pendurados às centenas na padaria onde foi pedir um pouco de café e um pedaço de pão.
Páscoa. Festa anual dos cristãos. Joana abaixa a cabeça. Não devem ser os mesmos que a deixam ali doente, no chão, suja, faminta, ouvindo o choro dos filhos que colocou no mundo quando ainda o marido tinha emprego e juntos cuidavam com carinho do barraco no Morro do Jacaré. Agora, nem barraco, nem marido. Só fome e desolação.
Qual o cristão que a empregaria em sua casa, assim, doente e suja, moradora de rua?
Já catou lixo para viver, quando chegava às cinco horas da madrugada no lixão, às margens da rodovia que liga o Rio a Belo Horizonte, mas, agora, a fraqueza nem permite mais andar tantos quilômetros carregando o fardo pesado nas costas até o ponto de venda daquelas tralhas.
Joana não imagina um dia comer salmão ou lagosta, nem tampouco sabe que o preço do almoço no restaurante Le Saint Honoré daria para ela viver com dignidade, por mais de um mês, com seus dois filhos menores.
Também não sabe que o preço de apenas um ovo de Páscoa sofisticado daria para ela e os meninos almoçarem a semana toda.
Enquanto Maria Amélia estiver saboreando as delícias do restaurante de primeira classe, Joana estará de mãos estendidas na calçada, pedindo, implorando um pedaço de pão. Seguramente, a dor de sua alma não a permitirá parar na banca de jornal, onde uma revista com letras garrafais descreve o delírio de fome de Anselmo, quatro anos, que na noite antes de morrer, perguntou: “ Mãe, no céu tem pão?”
O pão de Cristo dividido na ceia é o mesmo sobrando em muitos lares e jogado no lixo. Aquele lixo revirado por família inteiras, no ritual mais humilhante possível.
Maria Amélia e Joana irão passar o domingo de Páscoa bem perto uma da outra, mais jamais saberão da distância que as separam, porque estão no Brasil, onde é normal a desigualdade, é tão comum a falta de consciência. Talvez, por isso mesmo, seja o país campeão mundial em venda de ovos de chocolate.
Falando assim, parece até que a Páscoa aqui é para todos.
literaturagraciacantanhede
/ 5 de fevereiro de 2012Todos os comentários estão no blog literaturagraciacantanhede.blogspot.com, que foi substituído por este novo blog. Infelizmente não consegui transportar todos os seguidores.
usi argolo
/ 7 de abril de 2012Amei!!!
Chorei….
Leda Maria
/ 7 de abril de 2012Li seu texto e como sempre, me deparei com alguém que escreve o que realmente pensa.
É agradável a leitura e interessante o conteúdo.É atual o problema por se falar em Páscoa e “VIDA NOVA”.Como falar em vida nova se conhecemos a realidade dura e sofrida de quem não tem chance de mudar? Somente um milagre.Bjs Ledinha
Ana Paula Matos
/ 24 de abril de 2012Fantástico! Um dos seus melhores!!!