Bem que eu poderia ter ido mais adiante. Mais perto das altas grades que circundam a casa. Não o fiz. Ficaram para trás o gramado, as estátuas dos anões, a piscina vazia. E a piscina vazia representava bem o abandono do lugar.
Enquanto caminhava, ouvia meus passos e meus pensamentos. Eu, meus saltos altos, meus botões, meus antigos desejos.
Posso dizer que não falei com Kátia após tantos anos porque ela iria me olhar com os mesmos olhos de sua infância. Sem nenhum interesse. Ela nem sabia quem eu era. Eu, sim, conhecia bem a sua vida. Sua piscina em formato de coração, seu piano branco de cauda.
Já me sentara em um banco de jardim da Praça da Matriz onde seu nome com letras garrafais , ali estava, imponente, homenageando a cidade.
Na verdade, eu nem era dali. Estava de passagem. Como quando estive antes, pela primeira vez, quando as mãos da madrinha me acolheram na sala de jantar. Meu pai me levara para visitar Isaura, sua comadre. Almoçamos com eles naquele dia. O padrinho estava fora. Viajara logo cedo, cuidando de seus armazéns de café. O ouro verde. Negócios que envolviam muito dinheiro.
Saímos então para ver a sala de brinquedos. Um imenso espaço no andar de cima, onde a atração principal era uma locomotiva percorrendo os trilhos entre montanhas, cidades, campos, planícies, até chegar à estação, apitando como um verdadeiro meio de transporte.
Enquanto eu observava o sino da estação bater, a governanta apontava para um engradado de refrigerantes, mostrando à patroa que as garrafas estavam cheias, mas sem as tampas.
– Que desperdício! Tudo isso para ver se há prêmio na tampinha.
– Jogue tudo fora. (E não se ouviu outro comentário a respeito das garrafas).
Na casa havia duas escadas e muitas salas. Eu admirando todo o luxo. Era como se fosse uma retrospectiva, porém. Já sabia tudo sobre aqueles móveis, os enfeites, as novidades. As pessoas gostam de comentar sobre as excentricidades dos milionários. Diziam que a mansão era réplica de uma Vila Italiana, ou de uma Vila de Hollywood. “Só o piano de cauda, de marfim, custara uma fortuna”. Eu nem imaginava quanto.
Naquele dia os meninos corriam pelo jardim; travessos, alegres e lindos. Pareciam com o pai, um homem extrovertido, que gostava de agradar os amigos. Presenteava sempre os sobrinhos e afilhados, e eu me lembro bem do dia em que ele me deu um anel de ouro. Era pesado, com a letra “G” gravada e repleta de brilhantes. Sentia-me importante e orgulhosa com aquele anel no dedo. Era ajustado e difícil de perder. Mas acabei perdendo, não sei como. Anéis de diamantes não ficam mesmo muito tempo nas mãos de crianças. As bonecas que ganhei dos padrinhos não, poderiam ter durado a vida toda não fosse minha irmã ter destruído uma a uma enquanto eu estudava num colégio interno perto dali.
Minhas lembranças daquela visita não incluíam a outra filha do casal. Essa, eu vim a conhecer já mocinha. Gostava dela. Diferente de Kátia, ela era morena e magra. Também era bela, mas com um ar mais simples, era simpática, cordial. Talvez porque tivéssemos a mesma idade. Eu a vi poucas vezes, mas sempre vinham notícias sobre sua saúde. Era bastante frágil.
Corria o tempo, a vida mudara muito para todos nós. Sabia do mundo de intrigas em que se enredara aquela família. Muitas brigas. Águas turvas estavam rolando sob as estátuas do jardim. Luzes apagadas. Sombras. Separações.
Os jornais noticiavam o desvio de café dos armazéns. O governo cobrando mercadorias depositadas em confiança. Muito dinheiro sem origem certa. Gente falando da provável prisão do patrão. Amantes que vinham de longe visitá-lo. Ninguém para tocar o piano branco de cauda.
Foi nessa época a minha última tentativa de visitar a família. Eu havia cruzado com Kátia na esquina. Mas, como disse antes, não falei com ela, mesmo porque eu só queria ver a madrinha.
A família separada. Os rapazes desorientados. Tantas águas correram sob as estátuas do jardim. Já ia longe o dia em que desembrulharam as louças francesas, com filetes prateados. Azuis eram os dragões chineses.
-“Esses dragões dão azar. Costumam levar embora a boa sorte.” Eu ouvira bem o que a governanta falara para uma outra empregada. Lembro-me, sim, daquele dia.
Um burburinho vindo do jardim levou para longe minha preocupação com os dragões azuis. Pensei: é até cômico imaginar que tanto luxo pudesse combinar com um pé de arruda na porta. Isso é coisa de pobre. Acreditar em lendas? Não dormir com portas de armário abertas? Roupas do avesso? Cuidar para que sapatos estejam sempre com a sola para baixo? Crendice. Muita gente pensa assim.
Eu até acreditava que os duendes do jardim pudessem proteger aquelas crianças de cabelos cor de trigo maduro. Ou que a estátua de Yemanjá , por onde as águas rolavam , por certo afastaria a inveja dos que passavam do lado de fora do muro.
As águas que rolavam nas fontes, aquelas mesmas águas não descerão outra vez, como nós, a cada dia mais fluidos, o presente passando.
Depois, a casa foi ficando mais desfalcada. Foram-se os quadros, as luminárias, a prataria, os mimos de porcelana inglesa.
Sumiram também os cristais, os jarros e os tapetes, as flores do jardim. Um quarteirão de flores, de fontes, de caramanchões. E a piscina vazia. Muitas folhas no chão. Notícias ruins. Tantas desgraças.
Levaram o piano de cauda. Só ficaram os dragões azuis. Não sei se alguém se arriscou a levá-los. Ficaram somente os dragões azuis.
Publicado no livro “Todas as Gerações”- O Conto Brasiliense Contemporâneo”. 2006- Editora LGE – Seleção e Organização de Ronaldo Cagiano (Contistas selecionados pelo respeitado escritor brasiliense).
Publicado no Jornal DF Notícias ( Abril de 2007), no Jornal da OAB-DF, no Jornal “Literatura”, de Ray Cunha;
(Conto premiado e publicado na Antologia que reuniu os melhores contistas do Centro Oeste).