DA SÉRIE MULHERES APAIXONADAS: ELZA
O corpo velado em casa, na sala, com criadas servindo bandejas de café, homens de terno, mulheres vestidas com sobriedade e minha avó, de preto, elegantemente registrando tudo o que nos contou depois, com seus olhos verdes atentos sob os óculos de grau.
O enterro do homem respeitado na cidade de pouco mais de vinte mil habitantes reuniu os moradores do lugar. Seus amigos, fazendeiros, estavam todos lá, esperando que a esposa dele chegasse para dar início ao funeral. O caixão seria fechado às quatro horas e o sino da igreja cumpria o ritual, badalando de hora em hora, no anúncio da morte do Dr. Antenor, homem de posses, dono de terras, cafezais, boiadas e extensas faixas de terra que margeiam o Rio Sapucaí, naquele município.
A morte do fazendeiro ocorrera na estrada que leva à capital, na segunda-feira, num choque do seu carro com um caminhão que transportava sacos de arroz.
O falecido era homem de muitas aventuras, mesmo sendo casado com a bonita Elza, mulher apaixonada por ele desde jovenzinha, quando ele já se deitara com tantas mulheres que perdera a conta.
Ultimamente mantinha duas famílias, a oficial e a extra. Costume dos homens da região. “Casa Grande e Senzala”, herança dos tempos da escravatura. O casamento indestrutível e a tolerância oficializada a esses tropeços. Era assim a escrita.
Elza jamais aceitara a situação, mas o manto da discrição cobria a vergonha de saber que seu marido tinha amante ali mesmo, no bairro onde moravam.
Antes da viagem de Antenor ela avisara: não iria aguentar aquela situação dúbia. E aproveitara para dizer a ele tudo o que estava entalado em sua garganta havia meses: “homem sem-vergonha, amoral, deveria honrar o casamento, como o juramento que fizera no altar, de ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.”
Para a surpresa da mulher, Antenor, dono da situação falou com superioridade: “É assim que as coisas devem ficar. Nada será mudado. Parto para a capital e quando voltar, tudo continuará como antes.”
O ódio nos olhos de Elza eram chispas de brasas luminosas. Naquela mesma tarde ela foi para uma de suas fazendas, comandar a morte de um porco gordo, como era programado de dois em dois meses, naquela família.
O capataz reuniu os empregados que iam providenciando tudo: gamelas, facões, bacias, vinagre, limão, varetas para limpar as tripas, panelas e temperos.
O ritual de amarrar o porco, puxar seu corpanzil para o cepo e cravar o facão era sempre tarefa de um dos peões mais experientes.
Quando os homens se preparavam para a matança, ouviram o barulho de um jipe chegando. O jovem condutor desceu rapidamente do veículo e alcançou Elza. Os dois conversaram por alguns minutos e ele disse ser portador de notícia muito triste; pediu a ela que fosse forte, e descreveu o acidente da morte de Antenor.
A mulher não chorou, ao contrário do esperado, não se desesperou, mas avisou que não voltaria para a cidade, naquele dia, que fizessem o enterro sem ela.
Assim foi feito.
Elza então tomou em suas mãos um enorme punhal e desceu as escadas que levavam à cena da morte do suíno.
Todos os empregados se afastaram do porco que já estava amarrado e dopado.
A mulher segurou com força a arma e desfechou sem dó um golpe no coração do animal, numa estranha confiança que nunca sentira antes.
O sangue havia manchado todo o vestido de linho azul claro de Elza, e seus sapatos estavam encharcados do líquido flamejante.
Ela então fez o caminho de volta à casa, subiu as escadas enquanto tirava a roupa suja, ficando de calcinha branca e nada mais. Tomou um banho demorado, deixando a água escorrer pelos olhos, lábios, boca, pescoço.
Enxugou-se e deitou sobre a cama o corpo moído de dor.
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Enquanto minha avó relatava toda a história de Elza, ao nosso lado, minha tia Helena, ouvinte atenta de cada frase, talvez porque também sofresse com as traições do marido, falou baixinho, como se fosse para ela mesma: “Eu ainda mato meu porco”.