VÍRUS QUASE LETAL

GRACIA CANTANHEDE

Estou gripada.Não aquela gripe suína, temida, invasora de países e continentes. Mas, um resfriado de poesia. A explicação, penso, vem da calmaria de janeiro que me levou a reler Neruda, Adélia Prado, Mário Quintana e Fernando Pessoa.Fui para a cama com eles, mergulhei em páginas já conhecidas e elas, mais uma vez, me arrastaram como areia movediça. A sensibilidade aflorada, deve ser isso, fragiliza e vira hospedeira de inconveniências.

Dia desses falei sobre essas conclusões a um amigo escritor e ontem ouvi dele a certeza de ter sido contaminado pelo telefone. Também está acamado, com febre e dores pelo corpo. Consolei-o, mas desconfio que também ele anda transpirando versos. Pelos meus pensamentos insensatos, ficamos vulneráveis por culpa da sensibilidade. Quanto mais sensível o coração, mais frágil o corpo (deve ser esta a causa de tantos poetas terem morrido de tuberculose).

Receitei-lhe uma couraça de força, como armadura, que pudesse envolver-lhe. Assim, concluí, o mal irá embora. O remédio é livrar-se da poesia: olhe uma pedra e veja pedra mesmo. O espírito embrutecido deve servir para alguma coisa.
Sugeri, reiteradamente, que evitasse pensamentos poéticos.Versos tornam a alma densa de emoções. O ser em estado bruto, imagino, deve ser leve, sem remorsos, sem ilusões. Ser rude implica em ser calculista, não cometer bobagens, como rir de si mesmo, rir sozinho, rir à toa. Presentear com flores, sem se lembrar de data, por puro romantismo; bolir com as palavras; misturar música e vinho e juras de amor é para aqueles que ainda têm dentro de si uma criança brincando de ser feliz.

Consolo para o poeta é a metáfora. Cura folhas de papel em branco, telas vazias, ocas. Então, a alma blindada por metáforas pula e dança e corre e ri. Eis a alegria da criação. Se falo essas coisas é porque estou febril de um vírus quase letal: a poesia. Ela, instalada, nos faz flutuar em estado de graça. E, quase sem querer, a gente conversa com Deus.

VOLTA POR CIMA

Gracia Cantanhede

Algumas pessoas parecem dotadas de poderes sobrenaturais, pela maneira como enfrentam infortúnios.

Vendo as notícias da tragédia no interior fluminense, me dei conta da existência dessas criaturas.

São pessoas aparentemente comuns. Simples, em sua quase totalidade, aparecem nos noticiários mostrando disposição e coragem para recomeçar suas vidas. Nem sempre são jovens, mas estão reiniciando, muitas vezes, do nada.

Imaginar que passamos a vida juntando coisas, comprando objetos e enfeitando nossas casas, fazendo jardins, trocando móveis, retocando a pintura das paredes e o piso do assoalho e, de repente, ver tudo se acabar, assim, do nada, ou num estrondo de trovão.

E, lá se vão o resultado de tantos anos de trabalho, de esforço e dedicação.

As pessoas entrevistadas estavam , sim, agradecendo a Deus por estarem vivas. Nada mais.

O que dizer para consolar aqueles que perderam pais, filhos, netos, parentes , amigos e vizinhos.

A dimensão da dor inclui, ainda, a morte de animais de estimação, isso não pode ser subestimado.

Valores materiais pesaram pouco para quem viu partir entes queridos, e para outros que não conseguem encontrar os corpos soterrrados pela lama. Provavemente, jamais serão identificados.

O paraíso transformado em inferno, era o cenário pós-tempestade numa manhã ensolarada de janeiro.

Crianças órfãs, nos abrigos, homens e mulheres assustados, fisionomias sofridas. Mas não prostados. Todos se ajudando mutuamente até chegar a ajuda providencial do governo, da Cruz Vermelha, dos voluntários de várias partes do país.
Sem água, sem luz, sem telefone, o cenário era de guerra. Devastador.

Cada um de nós se sentiu apunhalado com as notícias dos telejornais. O sentimento de impotência nos tomou por inteiro, nas primeiras horas da desgraça anunciada aos quatro cantos do mundo.

Era um drama nacional, dos de lá e de cá.

A humanidade sempre passou por desgraças coletivas. As mazelas pessoais, enfrentamos como podemos. Muitas vezes não temos sabedoria para resolver nossos problemas, a não ser que uma couraça de fé nos guie por um caminho seguro. Viver sempre foi perigoso. A travessia é cheia de obstáculos. Tragédias particulares, muitas vezes, ficam entre quatro paredes. Raramente suspeitamos, ao olhar o vai e vem de pessoas na rua, o drama de cada um. E o mundo é uma vasta biblioteca, um rosto, uma cabeça, uma história. Porém, vivemos hoje numa espécie de ditadura do positivismo. Mostramos uma alegria e um entusiasmo, muitas vezes falsos. Afinal, é preciso ser forte, bem-sucedido. Crititicamos os fracos, sentimentalóides, chorões. Esses, estão sobrando na sociedade. Não há lugar para eles, para quem abre sua alma. Há que se calar diante da dor. Falso brilho de cristal, jóia de ambulante, reflete o ser do século vinte e um.

Pois, não tenhamos esses pudor, sejamos antigos no quesito transparência. Em compensação, também como o povo fluminense, não tenhamos medo de recomeçar. Depois da tempestade, ergamos a cabeça, reconstruamos nossa casa e cantemos para alegrar a vida.

A ESTRELA DOS REIS MAGOS

GRACIA CANTANHEDE (Texto publicado no Jornal Correio Braziliense – Caderno Mulher)

Quando as aulas terminavam  nós sabíamos,  era chegado o final do ano. A chuva começava a ser frequente e as enxurradas lavavam as ruas de paralelepípedos com a espuma das águas que eu via correrem, meu nariz grudado nas vidraças.

Esperava estiar para ganhar a rua à procura do arco-iris que saía sempre da serra, lindo, fulgurante, enchendo da imaginação minha cabeça coberta de cachos amarelos.
Sabia que era época de festas, e vibrava com as andanças pelo mato. Mamãe ia à frente para escolher um pinheiro bem redondo, harmonioso, que seria transformado em árvore de Natal, depois de replando numa lata grande. Teria cobertura de papel dourado, quando meu pai chegasse de viagem trazendo, bem escondidos, os presentes e alguns enfeites.
A família reunida fazia o presépio; não tão grande quanto o da igreja. Esse era enorme.

Os santos do presépio lá de casa eram pequenos, mas tinham um encanto especial.
Fazíamos, nós mesmos, a casinha coberta de sapê, o lago era um espelho enfeitado por alguns patinhos de gesso. O pasto, com uma porção de bois, vacas e cabritos feitos de barro,  à sombra de arvorezinhas, compunham um cenário magnífico.
O menino Jesus era o último a ser colocado no seu berço de palha, quando tudo estivesse pronto. Mas os Reis Magos eram os que mais mexiam com a minha fantasia: aquela história de estrela, do ouro, incenso e mirra. Além do mais, os reis tinham roupas bordadas, coloridas, mantos e coroas, tudo com muito brilho de brocal.

Na noite da Missa do Galo, as crianças faziam um grande esforço para ficarem acordadas esperando Papai Noel. Assim como eu, a maioria acreditava que ele existia, de verdade.

Os presentes não tinham sofisticação e nem sempre correspodiam aos pedidos das cartas endereçadas ao bom velhinho.

As novenas, essas sim, eram infalíveis. Rezadas de casa em casa, onde já esperavam biscoitos, bolos, um café fumegante na bandeja e o orgulho de cada família em mostrar o presépio feito com arte e carinho, para celebrar o nascimento de Cristo.

O melhor da festa, naqueles tempos, era sua preparação, sem luxo, sem vitrines, mas alegre, muito alegre.

Era uma festa de todos, pobres e ricos. Sem ostentação, mas com muita poesia. A poesia dos hinos das igrejas, dos sinos que anunciavam as missas, dos cantores dos Dia dos Reis e da folia que encantava algumas crianças e aterrorizava outras. Lembro-me de um primo que se escondia debaixo da cama quando a Folia dos Reis chegava, com aquele barulho todo, as fitas dos pandeiros fazendo um carnaval de cores no ar, e os homens fantasiados, grotescamente, de reis.

Minha avó preparava um lanche à sua moda, com queijos, broas de fubá, muito licor e um doce, danado de gostoso, chamado de pau-a-pique, enrolado em folha de bananeira.

Já era, então, seis de janeiro; e sabíamos, como não? A árvore voltaria para a mata, novamente plantada na terra úmida, fofa, perto do açude, local bom de pescaria, onde meu pai costumava pegar uns peixes grandes. Eu ia mesmo era observar os girinos que cobriam suas margens, misturados na folhagem exuberante que caía ao seu redor.

O tempo passava lento, sem pressa, sem atropelos. A igreja voltava a ser bonita, tão-somente pelos seus vitrais coloridos, pelos altares repletos de santos enormes e pala abóboda brilhante, onde eu me transportava durante horas pelo sonho de suas linhas barrocas, com tantos rococós, tamanha luminosidade ofuscando meus olhos nas manhãs ensolaradas.
Vejo agora o Natal nos shoppings, nos anúncios de televisão: as lapinhas foram substituídas pelos ornamentos mais exóticos, e a religiosodade da datas está esquecida num canto qualquer de nossa memória.
Um  Natal diferente vivemos hoje, tão diverso daquele espírito religioso. A alegria da simplicidade já não existe e a festa do dia 25 de dezembro, que era de todos, comemorada  em igrejas, principalmente, passou a ser mais mercantilista, embora sirva para reunir a família, o que já é o bastante, para a maioria.
Parece que só o luxo dos Reis Magos continua o mesmo.  E ficou para contar a história dos antigos natais.

DA SÉRIE: MULHERES APAIXONADAS: HELENICE

Era devota de Santo Antônio. Pedia para ajudá-la a pagar as contas em dia. Promessas e mais promessas. Consumista. Nem negava. Gastava o salário sempre na primeira semana do mês. Gostava de coisas boas, roupas finas e sapatos caros.
Conservas importadas e vinhos de safra especial frequentavam sua adega, sempre.
Fora acostumada a uma vida de primeira classe. Sempre apaixonada pelo luxo.
Nada de procurar costureira de subúrbio, salão de beleza de fundo de quintal, lojas de liquidação e restaurantes self-service.
Carro novo, jóias no “Dia das Mães”, viagens em julho e janeiro, era tudo que queria.
Queria. Porque hoje só quer mesmo é que o dinheiro dê para as compras do mercado, para o pagamneto da luz e da prestação da casa.
Ah a casa. Se pudesse contratava um guarda, desses que passam a noite rondando para afugentar os ladrões. É que já foi assaltada duas vezes, ficou sem uma bijuteria sequer. Levaram a filmadora, o relógio de parede, as relíquias de família.
Optou por comprar um filhote de pastor alemão, mesmo tendo um trabalho danado para criar o bichinho. E, haja paciência: veterinário, vitamina, cálcio. Depois, quem sabe, iria valer a pena.
Por força das circunstâncias, também já não comprava a prazo. Deixara a vida social de lado e restringira todas as despesas extras, o que nem de longe lembrava o “bolso furado” de antigamente.
Como os tempos estavam mudados naquela casa. Exceto quanto à mesa farta, que fazia a alegria dos eventuais hóspedes- parentes que aparecem para prestigiar a simpatia da família. Aí, os mimos estão presentes, pois, afinal, ninguém se modifica, assim, inteiramente, em pouco tempo.
Mas, a crise veio forte desta vez, e nem Santo Antônio estava dando jeito nas contas de Nicinha.
A vida ficara tão difícil, tão difícil, que as orações para o santo protetor já não estavam fazendo efeito.

Resolveu, então, a conselho de amigas, apelar para Santa Edwiges, a padroeira dos endividados.
Comprou a imagem da santa, acendeu velas, prometeu fazer a novena direitinho.

Outro dia, a cunhada quis saber o resultado das orações, e, muito séria,  Nicinha respondeu:

-“Olha, as coisas pioraram muito. Acho que Santo Antônio ficou enciumado comigo. Tão enciumado que depois que fiz a novena à Santa Edwiges, estou devendo até os fios de cabelo”.

FELIZ NATAL PARA VOCÊ, SEGUIDOR DO MEU BLOG, QUE É TÃO IMPORTANTE EM MINHA VIDA. ABRAÇO CARINHOSO DA GRACIA


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ORAÇÃO DE NATAL

GRACIA CANTANHEDE

Senhor, ouça a minha prece: quero um Natal de fé e de reflexão. As luzes interiores brilhando e ofuscando a árvore de Natal que armei em minha sala.
É tempo de perdão, de solidariedade e de amor. Sobretudo, muito amor.
Quero presentear com orações, meus filhos, meu marido, meus parentes e amigos.
Os amigos de longe e de perto, aqueles que visito sempre e os outros que raramente vejo. Os amigos recentes e os antigos, mas sempre lembrados nas datas especiais, como hoje, pois gostaria de tê-los todos reunidos.
Abraçarei contente as pessoas que me servem o ano todo. Pessoas queridas, mesmo quem apenas me saúda com um bom-dia.
Terei um sorriso para todos. Sorriso aberto, franco, de Natal. Porque meu cartão de boas-festas estará estampado em minha face, e sem distinção quero que todos se sintam felizes.
Distribuo os juros do otimismo, capital que não me faltou, mesmo nos momentos difíceis, neste ano que se finda.
É preciso ter esperança, apesar das notícias ruins dos jornais; ainda que a violência faça tantas vítimas, ainda que a miséria habite este país. Ainda assim, é preciso ter fé.
Que o Natal nos faça mais humanos, mais fraternos, mais humildes. E já será um dia melhor, um dia verdadeiramente cristão.


E, quem sabe, regressarmos alegremente à infância, onde a felicidade não custava nada e podia até mesmo estar no ato de colher, da mangueira, a sua fruta vermelha e saborosa.

Inventaram, há tempos, que a felicidade tem preço: uma grande mentira. É preciso encontrá-la nas coisas simples. Como a criança que a encontra na velha mangueira. Esse preço não se paga. Ela existe por si só, e o rico jamais a terá se não souber descobrir dentro de si mesmo, a dádiva da vida, do bem-estar, do otimismo. São esses sentimentos os responsáveis pela ração de alegria de cada um de nós.
Ensina-nos Senhor, a encararmos o Natal como filhos de Deus agradecidos e que ignoremos, por algumas horas, os nossos problemas, porque Cristo nasceu numa manjedoura, e, mesmo assim, Maria e José estavam felizes. Se aprendermos com eles, estaremos sendo sinceros quando desejarmos a todos um
FELIZ NATAL.

COMO A SERPENTE QUE MUDA DE PELE


Gracia Cantanhede (Texto Publicado no Correio Brasiliense e na Revista Jeito Mulher)

Descobrir a força da natureza não é tarefa simples e corriqueira. É preciso estar sintonizado com tudo que ocorre em nosso corpo, às coisas que nos cercam, às águas, à terra e ao reino animal, como um todo.

Não. Não é fácil descobrir essa força. Talvez, por isso, a maioria das mulheres ignore a sensação verdadeira de estar menstruada. Há mesmo quem maldiga o sangramento mensal e dele se envergonhe, reforçando a idéia de que menstruação é uma coisa ruim.

Nada, porém,de negativo existe em nosso ciclo menstrual, que representa, acima de tudo, a fertilidade.

Lara Owen,escritora norte-americana e autora do livro “Seu Sangue Vale Ouro”, afirma: “com a menarca ( primeira menstruação), entramos em contato com a nossa sabedoria. Na menopausa nos tornamos o próprio saber”.

O título do livro origina-se do mito da criação dos índios Kogi, habitantes de um local secreto das montanhas Sierra , na Colômbia, e, segundo eles, o mundo foi criado pela Grande Mãe, enquanto ela menstruava.

Os índios acreditavam que, ao sangrar, a mulher se encontra, física e espiritualmente, em seu estado mais poderoso. Chamavam a menstruação de “Templo da Lua”, e, tradicionalmente, durante esse período, a mulher se recolhia para descansar,meditar e adquirir sabedoria. Uma sabedoria benéfica para a tribo.

Ileana Petti, jornalista consagrada pelos brilhantes artigos publicados em jornais e revistas, aconselha às mulheres menstruadas a encarar o sangue como um fluido sagrado.

Assim, decifrar as mensagens do corpo torna-se mais fácil, acreditando ser seu útero uma flor aberta, repleta de uma brilhante luz rosada, enviando uma doce e especial energia, que purifica e alimenta.

Analisando a síndrome pré-menstrual, entendemos, então, tratar-se de uma mensagem do corpo, devendo ser explorada, reconhecida e não ignorada.

A tensão pré-menstrual e as cólicas aparecem para nos despertar, pois, toda vez que menstruamos entramos em contato com o inconsciente.

Muitas mulheres aproveitam a tensão pré-menstrual para canalizar a agressividade desses dias para o trabalho e afirmam terem bom rendimento no período.

Para as mulheres que choram, fica também o conforto: as lágrimas não derramadas duas semanas atrás, porque você não se deu a esse direito, vão saindo pouco a pouco no período pré-menstrual. Depois das lágrimas, a menstruação. É a ciranda da fêmea. Vamos nos renovando. Como a serpente a mudar de pele, há uma deusa em cada mulher,que dispõe do poder mágico de verter sangue como fonte de vida. Ciranda da força de ser mulher e assumir todos os encargos da vida moderna, sem perder a feminilidade, jamais.

A MULHER BRASILIENSE

Gracia Cantanhede

No final dos anos cinquenta, as pioneiras chegaram para acompanhar suas famílias na construção da nova capital brasileira. Vieram de todas as partes do país,dispostas a trabalhar num cerrado coberto de poeira, sem conforto, sem saber por quanto tempo ficariam. Os acampamentos eram precários, a vaidade cederia lugar à praticidade, numa época em que o mundo começava a discutir os direitos da mulher, embora, no Brasil, pílula, divórcio e inserção no mercado de trabalho eram assuntos quase proibidos. Lembro-me de ter lido num livro antigo,uma proposta para um anteprojeto de lei que começava sua justificativa assim: “A sociedade brasileira ainda não tem suficiente preocupação com os seres indefesos:crianças, idosos, mulheres, deficientes e animais sofrem pela mesma causa comum- o exercício do poder do mais forte contra o mais fraco”. Acreditem ou não, alguém escreveu o que à época se pensava, nada mais.
A história nos mostra que as mudanças foram acontecendo no Brasil graças a mulheres como Bertha Lutz, Nísia Floresta, Chiquinha Gonzaga, desafiadoras, audaciosas precursoras das feministas de todo o mundo.

No começo dos anos sessenta, já com cidade inaugurada, brasileiras e estrangeiras continuaram a chegar. Eram funcionárias públicas vindas do Rio de Janeiro, embaixatrizes acompanhando seus maridos embaixadores, esposas de políticos, curiosas e aventureiras de todas as classes sociais.

Em Brasília, a passagem para a era pós-industrial e a decorrente necessidade da mão de obra feminina colocaram a mulher fora de casa, afinal, Betty Friedan já havia queimado sutiãs e o primeiro passo para a conquista da liberação fincara o pé contra o machismo.

Brasília era o novo eldorado dos retirantes mineiros, goianos, nordestinos e sulistas. Levas de operários ainda continuavama chegar ao Núcleo Bandeirante, berço da terra de Dom Bosco.

Hoje, passado meio século, comemoramos a liberdade de opinião, o direito ao sexo livre, sem culpas. Os serviços domésticos são divididos entre os parceiros e ambos contribuem para o orçamento familiar. Claro que ainda falta muito para a chamada igualdade: os salários, por exemplo, nem sempre são iguais para homens e mulheres, há resquícios de machismo, mesmo em cidades como a nossa, moderna e cosmopolita.

Mas, não nos esqueçamos de nossas raízes, aquelas pioneiras que enfrentaram a poeira que lhes encobria o rosto, mas não impedia a visão: estavam na terra do futuro, num lugar de oportunidades e descobertas, uma cidade onde pudessem realizar os sonhos. E a nova geração é o resultado da luta por uma vida melhor. Lotam universidades e academias, brilham nos palcos, vibram nos shows da vida, abrindo empresas, liderando na política e nos negócios, compondo,escrevendo livros.

Se alguém duvida do sucesso das brasilienses, basta dar uma volta pela cidade: mulheres bem-sucedidas, elegantes, alegres, sensuais, bonitas. Sim, como são belas as mulheres brasilienses

ERA UMA VEZ

Gracia Cantanhede

Alguém me fala de uma casa à beira do lago, com uma praia e muitos arbustos caindo sobre as águas, com flores que parecem cachos de ouro e gramíneas que vão até o riacho.

Era uma ilha de muitas fantasias. E lá morava um jovem casal, cheio de vida, que criava cães de raça, passarinhos e até um papagaio.

A moça não tinha filhos, então costumava a dar aos bichos uma grande porção de carinho. Coisa que, a gente sabe, às vezes nos faz sofrer, porque costumam ter finais trágicos esses amores em que a gatinha sai para dar uma volta e nunca mais aparece, ou, de um vizinho que resolve envenenar o cachorro ou, até mesmo de passarinhos que num dia estão alegres e no outro são encontrados mortos em sua gaiolas, sem a menor explicação.

Foi assim a história do papagaio. Historinha triste, porque o bichinho passou a ser tratado como gente. E ele cantava, assobiava, chamava as pessoas o tempo todo, assim, como alguém da família.

Ela, que nem era dada a fazer trabalhos manuais, porque era inverno, teceu com esmero, capinha de tricô que protegesse seu corpo.
As comidas, também, era preparadas especialmente para ele. Veterinário, remédios, vitaminas no bico eram alguns dos cuidados que a moça dispensava ao seu bichinho.

A casa era uma festa com o papagaio, ainda que lá não faltasse o canto dos sabiás e dos curiós, ainda que um beija-flor azul fizesse seus vôos todas as manhãs na varanda, sobre os vasos de antúrios, com uma graça leve e singela. Mas o papagaio era uma paixão para a moça, o que, às vezes, preocupava o marido: ” Você esta criando muito amor a esse bicho…”

Um dia, quando o sol invadia o jardim, com suas flechas de ouro, a moça levou o papagaio, colocou-o pousado num galho de árvore e ficaram os dois, por longo tempo, ali, em paz, na manhã eterna dos que estão sós.

Ela adormecia, dourando a pele, ou mergulhava nas águas da piscina, vestida de luz, respirando ar limpo e livre.

Às vezes, batia uma tristeza, penso, mas que ia embora logo, logo, porque o tagarela se encarregava de espantar os maus espíritos. Ele não permitia que a tristeza aportasse no cais daquela casa.

A moça levava o bichinho no ombro para onde ela ia, quando estava nos arredores do jardim. Naquele dia, deixou-o ficar ali enquanto precisou sair um pouco, de repente.
Ao voltar, só enxergou algumas penas verdes e as manchas de sangue no cimento.
Correu os olhos e ainda viu o vulto de um gato que sumia.
Era uma vez um papagaio.

A SECRETÁRIA

Gracia Cantanhede

Salto alto, batom cor-de-rosa, saia e blusa de linho bege, certamente não combinavam com o ônibus lotado daquela manhã.
Empurra-empurra, e ela pensando.
Ontem deixara tudo arrumado: a mesa da sala de reuniões com os clipes, grampeadores, lápis, blocos…
Maria pensando no que lhe esperava.
Como estará o humor do chefe?
O ônibus pára; e desce gente e sobe gente. Ela desce espremida.
Maria, como todas as Marias do mundo, tem uma história. A história, talvez, de mil Marias.
Chega ao escritório, entra e deixa suas histórias do lado de fora.
Sorrisos, batidinhas nas costas, as mesmas coisas de todos os dias.
Agenda na mão, vai anotando tudo. Secretária precisa ter ótima memória , ser ágil e saber sorrir.
Sorrir é indispensável.
Organiza o seu posto de trabalho, atualiza os arquivos, os fichários, atende ao telefone. Ah! o telefone: é a mulher do chefe, o filho do chefe, o chefe do chefe …
Tanta gente, até aquela mulher estranha…
Com ar de inteligente, parecendo entender tudo, Maria vai sorrindo.
Um amontoado de papéis que pressionam. Ela precisa dar ordem à confusão.
Por onde andará o motorista? O chefe se exaspera. Chega cliente, chega recado, chega mensageiro, e o motorista, esse, não chega. Onde andará? Que ansiedade.
Hora do almoço; ela espera um telefonema. É a sua vez. Que ninguém lhe roube este sonho.
Quase duas horas, e nada “dele” ligar. Decerto vai dizer que o celular estava descarregado e que a linha do aparelho fixo estava sempre ocupada.
Maria engole uma refeição dietética, leve, frugal, como o salário. Assunto indigesto.


E lá vem o chefe ajeitando a gravata, reclamando do calor e cobrando as passagens da viagem a São Paulo .
Novamente Maria atende aquela mulher estranha: deseja saber o horário do vôo…Tantos segredos… Dos dez mandamentos da secretária, o primeiro deles
é manter sigilo de tudo que ouvir ou souber.
Registra os prazos para a execução das tarefas, digita ofícios e memorandos, sentindo-se como a própria Lilian Sholes, a primeira mulher a secretariar uma empresa.

Maria é a anfitriã, corre para receber as pessoas. Elegante e simpática, cordial, como devem ser as assessoras de homens importantes, mesmo que isso signifique dar uma dimensão maior à figura do chefe.
Ela está programada para a arte de secretariar.Nada difícil, portanto, atender com solicitude, ouvir com atenção e responder com veracidade, controlando as palavras atitudes e emoções.
Maria está cansada. É tarde. Os outros empregados se preparam para sair. Ela gostaria de ir com eles, mas tem que continuar ali.

Empertigada, observa que está sozinha na sala. Então, retoca o batom, ajeita os cabelos e retoma seu posto: o chefe pode chamar a qualquer momento.
Maria não sabe por quanto tempo ficará em posição de alerta.
Ela vai esperar horas, ainda. Até que o chefe apanhe o paletó e lhe diga, distraidamente: boa-noite.

O final, você decide:

Então, ela joga tudo para o alto, porque a vida não é para ser levada tão a sério: por hoje chega. Hora de relaxar.

Ilha de dor

Gracia Cantanhede

Na minha cidade, hoje, existe uma casa triste. Silenciosamente triste. Suas janelas estão fechadas, as cortinas cerradas, as luzes apagadas, como se lá não existisse ninguém. E acho que não existe mesmo. Seus moradores estão lá, mas são como fantasmas, vagam naquela casa. A alegria não reside mais naquele local. O burburinho das horas do dia deixou uma lacuna. Não há pressa nem relógios marcando o compasso do cotidiano. O que restou do último fim de semana foi uma dor imensa, incomensurável, infinitamente cruel, cercada pelos mistérios da finitude do homem.
O que poderia ser uma manhã alegre revestiu-se de negro torpor. O luto da despedida Tantos sonhos interrompidos, tantos desejos calados.
Olho para a casa e imagino a dor dos que lá estão. Dói em mim também como se eu habitasse aquele teto. Sinto a angústia daqueles moradores. A fragilidade talvez que costuma inquietar o ser humano nesses dolorosos e incompreendidos episódios.
O clima seco e o calor dos dias de setembro em Brasília são insuficientes para impedir o fluxo das lágrimas dos moradores daquela ilha. Lá chove um choro que molha lençois e camisas, desidrata almas, rega a grama ressequida.
A casa me chama, a qualquer hora. Da varanda olho seu sombrio pesar. Sou um visitante desconhecido, anônimo, devassador de suas vidas e da morte que acampou em seu jardim.
Também busco respostas, indiscreta e atrevidamente. Quero saber o que poderia ser evitado, como se isso fosse possível. Não entendo nada dos desígnios do Criador. Senhor da luz e das trevas. Não tenho o direito de fazer indagações. Devo me recolher ao conformismo, evitar questionamentos. Devo, sim, e faço, orações para aqueles que estão tão perto e tão longe de mim.
Bem sei, o tempo vai passar e a casa voltará a ser simplesmente uma casa. Pode ser que seus moradores sejam muito mais forte do que eu.
As cigarras estarão cantando na esperança de chuva, a seca dará adeus a mais uma estação e a primavera que chega encherá a cidade de cores.
Daqui da minha janela olharei a casa que me faz tão sensível e me lembrarei que a vida é mesmo um grande mistério, sem direito a rascunho, sem direito a ensaios. O teatro está sempre no mesmo lugar, mas o espetáculo recomeça quando se abrem as cortinas e poderá ser interrompido a qualquer momento. Somos todos atores à disposição do Diretor. É Ele quem rege esta tragicômica peça chamada existência. Só nos resta aguardar a próxima chamada.