HERESIA

 

A impressão é de que passei anos dormindo e, de repente, acordei. Não sei bem se é passado ou futuro. Fico tateando no vácuo, querendo achar luz ou algo que me ilumine. Eu mesma não consigo entender o que se passa. Estou assustada, claro! É muito difícil entender o emaranhado de ideias que passam pela minha cabeça, como relâmpagos. O real mistura-se com o irreal, fico paralisada por uns instantes. Em outros momentos tento reconhecer as pessoas que parecem passar pela minha frente. Olho, olho novamente, olho várias vezes e, nada. Vejo portas, mas estão fechadas, parece que caí em um buraco de onde não consigo sair. Tudo começa a girar. O fato é que estou apartada das pessoas. Uma caverna, talvez. E os corredores que vejo entre as pedras levam a outros corredores, mais estreitos ainda. As pessoas estão pequenas, não as reconheço, novamente não as reconheço. Parecem estar em um ritual. Símbolos inacreditáveis.
Olho para frente e vejo um deserto. E já não sei o motivo de minha inquietação. Sinto necessidade de sair desse emaranhado de sensações. Estarei no lugar errado? Na hora errada? Qual a porta de saída? Estarei perdida nesse labirinto?
– Alguns bonecos de aparência estranha, agora, olham para mim. Parecem confusos, não temos nada de parecidos.

Uma enorme jabuticaba parece controlar o ambiente.

Jabuticaba, jabuticaba, repetem as vozes.

Olho para a fenda ao longe e vejo gente gritando, parecem enlouquecidos, bradam palavras que eu não compreendo. Estarei perdendo os sentidos?

Ergo os olhos e vejo o cenário catastrófico. Coisas que não entendo, não reconheço, não consigo dar nome. É tão diferente de tudo que já tinha visto!
Véspera do Apocalipse?
Um hospício?
Quero levitar, quero sair desse caleidoscópio, figuras geométricas de vidro. Mentira, são mentiras girando ao meu lado.

Mentiras, mentiras.
Fábrica de mentiras disfarçadas de verdade. Ninguém sabe mais o que é uma coisa ou outra.

Até que alguém grita meu nome:
_Vamos embora, estamos atrasados. Vamos!

Entro em um carro e seguimos deixando para trás aquele lugar. Tudo muito tenso. Mais uma rua e avisto uma carreta com uma réplica da estátua da liberdade, ali, deitada.
O motorista explica que há dias querem desembarcar aquela coisa enorme e fincá-la por ali mesmo.
Nesse momento começo a rir. Rio alto. Rio pelos meses todos sem rir. A muito custo, paro. A descontração chega, finalmente.
O maxilar parece normal. A temperatura também. Estou bem física e mentalmente.
Um banho morno me espera.
É o tempo de pegar a bagagem. Enfim, rumo ao aeroporto.
Tudo checado…
Vamos caminhando direto para a escada do avião. Alguns passageiros de outro voo passam por nós.
Ouço conversa de alguém ao celular. Calhou.

– Hasta la vista.

Repito a frase, sorrindo:

Hasta la vista, baby.

gracia cantanhede

 

******

Até onde a vista alcança rolam as águas
transbordantes
E o tempo passando ao redor do quarto
O mundo é tão pequeno visto dali
O que existe dentro de mim, tão limitado!
São as quatro paredes, iguais às do meu quarto
Nada me faz melhor do que esta reflexão:
Quão mínima sou!
Um fio de cabelo escorrendo sobre o pulôver,
a letra de um livro aberto em página qualquer.
Tantas frases em hieróglifos
embaralham-se e formam novas linhas.
Numa estranha combinação de palavras,
estou presa à rotina e às fronteiras.
Necessito de me adaptar às coisas,
a tudo que é vasto e grande e gélido,
crescendo em cima de mim mesma.
E nada para deter o tempo.

 

Gracia Cantanhede
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