Ensaio sobre Cabra-cega, de Gracia Cantanhede

À luz do crítico literário Afrânio Coutinho (1911-2000), compreende-se a literatura como “a transfiguração do real, a realidade recriada através do espírito do artista e transmitida através da língua para as formas que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e uma nova realidade” (Notas de teoria literária, 1975). Por sua vez, de acordo com Nelly Novaes Coelho (1922-2017), a “Literatura é arte, é um ato criador que, por meio da palavra, cria um universo autônomo, realista ou fantástico onde os seres, coisas, fatos, tempo e espaço, mesmo que se assemelhem aos que podemos reconhecer no mundo concreto que nos cerca, ali transformados em linguagem, assumem uma dimensão diferente: pertencem ao universo da ficção” (Literatura e linguagem, 1994).

A Literatura não está na escrita em si, mas naquilo que a escrita provoca, por isso ela não pode ser vista só pela estrutura ou pela forma, mas como um todo que adquire um sentido perante a leitura de cada um. A literatura apesar de abranger todo universo ficcional, não é só ficção. Na realidade ela é o modo como se diz algo, é usar a palavra de maneira especial, é aquilo que, ao ser dito, provoca um estranhamento, um choque, não pelo que é dito, mas pelo modo como se diz. Nem sempre referendando o conceito formalista de “literariedade”, os escritores incluem em suas obras literárias tipos de discurso que transcendem a escritura puramente artística ou imaginativa para contemplar a esfera da cultura em geral.

Dos elementos mais atemporais do texto literário, destacam-se: i) a ênfase dada à expressão (como se diz); ii) a maior ocorrência de linguagem conotativa (que apresenta sentido simbólico ou figurado); iii) a linguagem mais pessoal, carregada de emoções e impressões; iv) a intenção mais estética (o texto visa a fruição); e vi) o uso da plurissignificação como recurso criativo. Dos elementos mais datados do texto literário, notabilizam-se: i) a ênfase dada ao conteúdo e à informação (o que se diz); ii) a maior ocorrência de linguagem denotativa (que apresenta sentido literal); iii) a linguagem mais impessoal, objetiva; iv) a intenção mais utilitária (o texto visa a informação); e v) a busca de precisão nas informações que veicula. Convém ressaltar, à luz do que disse Freud (1856-1939), em O poeta e o fantasiar (1908), que o escritor criativo, em exercício de devaneio, agindo como tal, rasura a cômoda distinção apelada no par objetivo/subjetivo. Nessa perspectiva, há a desconfiança sobre a história enquanto campo de uma organização factual, de totalidade empírica, na qual se localizaria a verdade tal qual se acreditou existir, una e reconhecível, apesar de suas encenações várias.

O historiador estadunidense Hayden White (1928-2018), em Meta-história (1973), refere-se a “passos imaginativos” utilizados para compor, em termos narrativos, a historicidade. Além do componente imaginativo, o efeito do “real mais que real” – a retórica da verossimilhança – desponta como virtude literária também. Melhor dizendo, como biografema, à maneira sugerida por Roland Barthes (1915-1980), vida e obra se fundem pela linguagem e, por essa razão, tornam-se partes de um todo orgânico poetizado, que se encontra localizado entre a ficção e a realidade (Sade, Fourier, Loyola, 1971; A câmara clara, 1980; e A preparação do romance, 1978-1980).

A fusão de historiador e contador de histórias já se dava há quase dois mil anos, quando Plutarco (46 d. C.-119 d. C.) descreveu concisamente as vidas de dezenas de sumidades políticas e militares do mundo antigo grego e romano. Vidas que, por serem notáveis, deveriam ser perenizadas. Porém, ao retrocedermos já ao antigo Oriente Médio, encontramos nos túmulos vestígios biográficos da vida de reis e faraós. Também as narrativas das sagas de heróis épicos entre celtas e germânicos contêm fortes traços biográficos. Do período medieval, destacam-se as biografias de heróis nacionais, de senhores feudais, de membros do clero e as hagiografias, as biografias de santos. Essas narrativas da vida de uma pessoa ou de um conjunto de pessoas tornou-se importante ferramenta no conhecimento não apenas de indivíduos particulares, mas da história de grupos inteiros, através do entrelaçamento de histórias de vida e, consequentemente, dos aspectos sociais envolvidos.

Contudo, tornou-se corrente, atualmente, a percepção de que a biografia preencheria um lugar que a historiografia por si só não ocupa, aquele das “irrelevâncias” e, por meio delas, a individualidade seria realisticamente trazida à tona. Os detalhes pertencem às incontáveis minúcias do prosaico cotidiano e contribuem para dar vida a indivíduos tidos, até então, quase como fantásticos. Esta complexificação fez com que a biografia se aproximasse do romance. A biografia está marcada, portanto, por duas características: por um lado, a ênfase no caráter épico da temática, que prioriza grandes ações e acontecimentos sociais num longo espaço de tempo, o que evidencia uma narrativa de intenção historiográfica; por outro, o eixo narrativo concentrado geralmente na vida de um único indivíduo.

Entre o consagrado (lembrado) e o esquecido (ignorado), chama-nos a atenção nessa “guerra de narrativas” o que se produziu, em matéria de história dos vencedores e história dos vencidos. Se, por um lado, a humanidade produziu notáveis avanços tecnológicos e poderoso desenvolvimento econômico; porém, foi também um mundo marcado por sucessivos eventos traumáticos causados pela ordem supremacista. Ao longo do tempo, na literatura, narrativas foram produzidas, oriundas de relatos de vítimas desses agudos acontecimentos que sublinharam diferenças desiguais e discriminatórias entre pessoas e grupos sociais. Por isso, tornou-se essencial discutir, por exemplo, a questão do testemunho como importante ingrediente para ler à contrapelo os

dispositivos da “era dos extremos” (1994) – como diria o historiador Eric Hobsbawn (1917-2012) –, marcada pela capitalização dos lucros e a socialização dos prejuízos na aldeia global. Produziu-se e continua sendo produzindo nesse contexto de globalizações assimétricas que se avolumam historicamente, um corpus literário volumoso e robusto que contém forte caráter memorialístico, apelo confessional e certos aspectos do que Márcio Seligmann-Silva chama de “escrita traumática” (Memórias da repressão, 2008).

Assim sendo, os fragmentos memorialistas introduzidos na ficção funcionam como material restaurado de um passado repleto de atrocidade. Há uma longa trajetória literária na função de instrumento de denúncia das mazelas da sociedade. Escritores do quilate de Charles Dickens (1812-1870), Victor Hugo (1802-1885), Maria Firmina dos Reis (1822-1917), Luiz Gama (1830-1882), Machado de Assis (1839-1908), Castro Alves (1847-1871), Cruz e Sousa (1861-1898), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), Lima Barreto (1881-1922), Graciliano Ramos (1892-1953), Dyonélio Machado (1895-1985), Guimarães Rosa (1908-1967), Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Clarice Lispector (1920-1977) navegaram por esses mares bravios, agindo como intelectuais engajados, colocando sua arte a serviço da crítica social. Combinando elementos do real e do imaginário, essa tradição de autores vem compondo uma “linguagem documentária” capaz de estimular outras escalas de verdade, o que viabiliza um entendimento mais ampliado do que se versa ordinariamente como “acontecimento histórico” (Adam Schaff) e/ou “bios midiático” (Muniz Sodré).

Não à toa, o crítico Antonio Candido (1918-2017), em seu antológico texto O direito à literatura (1988), promove afirmação audaciosa: “a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”. Em Cabra-cega (Patuá, 2021), a romancista Gracia Cantanhede realiza com postura reflexiva e sensível exemplar a literatura como abrigo dos corpos fraturados, acolhendo-os no conjunto integral de suas realidades, aspirações, desejos e necessidades. Destacando a narrativa testemunhal de Maria Divina, a escritora mineira, radicada em Brasília-DF, ressalta o valor do testemunho na composição e apresentação de relatos reveladores de traumas e de tramas individuais e sociais, o que confere atenção e reconhecimento às narrativas e às questões expressas por minorias, sobreviventes de holocaustos e de outras formas de genocídio, repressão e violação dos direitos humanos.

O testemunho é, num sentido, uma extensão da memória, tomada na sua fase narrativa. Sendo assim, o relato testemunhal também faz parte do campo da memória, em que as narrativas são fragmentos de experiências do trauma e do traumatizado. É notável como a literatura de testemunho, fomentada em Cabra-cega, contribui para a compreensão de assuntos que dialogam, dentre outros aspectos, tanto com a questão histórica quanto com as reflexões existenciais do ser humano. Trata-se de uma obra que ilumina com a sabedoria da razão o debate sobre escolhas civilizacionais em que o mal foi banalizado, impedindo o advir do tempo da delicadeza. Abrindo as cortinas para fazer brilhar o exercício fraternal do humano, Maria Divina, com certeza, compõe a galeria dos grandes personagens literários que nos ensinam a ter personalidade, no sentido autêntico, solidário e gentil do termo. Cabra-cega, assim como o legado construído por outras grandes enredos, é também nossa esperança de óculos, mesmo na tempestade de ações violentas. Realista, como apelo necessário, e idealista, como primor desejado, Cabra-cega implica atenção, foco, uma habilidade superior que rasga o tecido repetitivo do cotidiano. Como extrair beleza e sentido da vida em migalhas?

Propiciando-nos o poder de administrar amplamente a realidade (sob o interesse do domínio e do consumo), o espírito da máquina alivia a sensação de decadência de nossa civilização técnica. É um tranquilizante que se precipita sobre nós, nos fecha e nos aprisiona e nos convence de que viver em seu círculo é “ascensão e vida concreta”. Como superar essa situação de máquina, de cabra-cega? Devemos ir para mais perto da realidade, puxá-la para nós, recolhê-la, agasalhá-la fortemente em nossas representações e nos entreter com ela em nossas ocupações. Porém, adverte a voz narrativa por Gracia Cantanhede inventada:

Cabra-cega é muito mais do que um jogo. É um espelho para a percepção de nossos papéis na sociedade. Muitas vezes somos incapazes de enxergar a realidade à nossa frente, como se usássemos uma faixa impedindo a visão do que não queremos perceber. A metáfora da brincadeira infantil, que leva ao medo e à adrenalina, ganha contornos de covardia. A venda nos olhos, usada para impossibilitar ou obscurecer nossa lucidez.

Para entramos na cadência da realidade, precisamos de mais alma, como para ver, a luz precisa de olho. Onde buscar essa alma? Em nós mesmos! Para tanto, precisamos curá-la da ‘poluição’ do espírito de máquina e devolvê-la à alegria da terra: à aprendizagem de seu ser e à aprendizagem de convívio com todos os seres. O que impede a realização da vida em abundância e plenitude, uma vez que “o homem está condenado a ser livre”, conforme assevera Jean-Paul Sartre (1905-1980)? Mesmo sofrendo todos os tipos de violência e privações variadas, Maria Divina carrega com ela “a coragem da esperança” e “a estranha mania de ter fé na vida”. Gracia Cantanhede traduz alegoricamente a condição humana à luz dos dilemas vividos por Maria Divina:

[…] uma história crua e fragmentada. Relatos de sofrimento, de desamparo, de miséria humana. Os leitores são contagiados pela dor nas primeiras páginas e verificam, no esconderijo de algumas percepções, que as principais amarras são as construídas pela ignorância e pela miséria. É a cabra-cega tateando, no escuro, perdida, o tempo todo, na selva do seu mundo interior. Alguém querendo agarrar uma oportunidade para mudar de vida. Quem vive em um labirinto tem desejo de encontrar saídas. Para fugir é preciso coragem, um pouco de loucura e muita fé.

Desde sempre, moramos na nostalgia da inquietação. Esta nos faz caminho, pesquisadores da realidade, intérpretes de sua paisagem, operantes de fantásticas realizações. A existência-no-mundo é peripécia de avanços e recuos, uma viagem que parece nunca chegar. Pelas trilhas tortuosas de um Brasil profundo, Maria Divina, longe de ser rasa, destemidamente disputa a sabedoria da realidade e inflama-se por ela. Isto significa ir em direção às coisas em si mesmas, aproximando-se delas, ficar junto e sugar o seu sentido, o seu sabor. A protagonista de Cabra-cega tem a consciência do seu próprio valor, o que é digno de elogio à sua própria autenticidade: “nasci com o vírus da liberdade. […] É fácil gostar das pessoas cordatas, calmas. Talvez, por eu parecer um furacão, minha vida tenha sido mais difícil. Quem sabe? Mas não posso pedir desculpas ao mundo pelo que sou. Tudo em mim era exagerado. Ainda é! Sentimentos e atitudes”.

O autorretrato de Maria Divina deita raízes caudalosas no debate fecundo sobre a existência interior e exterior. A existência nos leva a compreender que o humano é “ser-em-situação”, vinculado ao mundo e aos outros. Aqui no mundo, por mais amassado que se sinta, o ser humano se alonga no seu “poder-ser” mais próprio:

Se eu [Maria Divina] tiver de ser cabra, que seja das que berram com vontade, disse a mim mesma muitas vezes.

Desde os meus 11 anos, eu era taluda, como diziam os sertanejos. Pernas grossas e corpo que ia formando-se com contornos de mulher. Meus seios apontaram prematuramente. Eu tinha vergonha deles. Queria escondê-los. Atrapalhavam minhas corridas, uma das minhas diversões. Meu tom de pele, na juventude, chamava a atenção porque me chamavam de morena cor de jambo. Há muitas controvérsias com relação ao termo moreno cor de jambo. Hoje em dia esse termo é usado como sinônimo de mulato ou negro. Muita gente usa-o sem saber bem o que é um jambo e que cor ele tem. Sou da cor da maioria dos brasileiros. Mistura das raças negra, branca e indígena. Um tom cobre, ou de cuia, como minha mãe costumava dizer. O sol deixava-me meio avermelhada, sobressaindo o castanho dos olhos, grandes e vivos. Não faltavam brincadeiras como a que ouvi de um primo: Você é uma potranca castanha, de crina lustrosa. Na verdade, ele queria dizer que eu era uma mulher de corpo forte e bonito, com a cor indefinida e mais para indígena, o que não era verdade. Talvez pelos meus cabelos brilhantes e fartos, sempre soltos, chovidos sobre os ombros. Mas sempre me considerei negra. Com o passar dos anos, mais ainda, porque a pele do meu rosto ficou com manchas muito escuras, denunciando minha ascendência africana. Segundo um racista, eu tenho cor de bandido.

– Sou brasileira, da cor da maioria do nosso povo.

O processo de identificação, definindo fronteiras internas e externas, individuais e coletivas, é marcado por um contexto relacional e dialógico. Pensar em identidade, ou identidades, significa refletir sobre os laços intra e extra grupos, o processo de definição de pertencimento e diferença, a produção simbólica e material de fronteiras. Uma das principais características da identidade é a marcação da diferença, estabelecendo relações de pertencimento, participação, igualdade, mas também de segregação e distanciamento. Metaforicamente, sobre o referido assunto, Gracia Cantanhede oferece o caminho das pedras:

As pedras brancas no fundo do riacho eu diria que eram minha fantasia. Mas não imaginava serem diamantes. Cresci pensando que todos os riachos eram transparentes, como aquele cheio de encantos. Agora sei, a maioria é barrenta, perigosa, e não tem o encanto do riacho de brilhantes.

Agora sei. Já nem me importam os rios que passam, barrentos, pela minha vida.

Como leitores de Cabra-cega, acessamos algumas características que compõem as narrativas de teor testemunhal: (1) registro em primeira pessoa (2) compromisso com a sinceridade do relato (3) desejo de justiça (4) vontade de resistência (5) abalo da hegemonia do valor estético sobre o valor ético (6) dramas individuais e coletivos (7) presença do trauma (8) rancor, ressentimento e indignação (9) vínculo estreito com a história (10) misto de vergonha e revolta pelas humilhações sofridas (11) sobrevivência entre os sentimentos de culpa e responsabilidade; (12) re-apresentação contestatória do vivido/sofrido. A seguir, emblematicamente apresentam-se outras amostras literárias da obra que continuam embaladas pelos procedimentos formais e conteudistas enumerados agora há pouco:

Casei-me aos prantos, mas ninguém teve piedade. Além do meu pai ter me forçado a casar com o estuprador, ainda me expulsou de casa, dizendo que eu não poderia voltar para visitar a família. Assim, usando saia larga bege, caindo de folgada, dançando em minha cintura, presa por um cinto vermelho, e com uma blusa branca com pequenos furos rotos de velhice, eu me casei.

[8]

Há uma linguagem bruta, um estrondo de raio que estremece, gela meu corpo, espia dentro de mim, acusando-me, moendo meus pensamentos. Depois costura com remendos, agulha e fio de alta tensão.

Meus sonhos de estudar, me formar em Enfermagem, arrumar um bom emprego, me casar com um homem honesto e trabalhador, ter filhos e uma casa boa acabam por aqui, pensei.

Depois que me casei com João, meu calvário só aumentou.

Sobrevivente do inferno, como se estivesse a cada momento marcada para morrer, Maria Divina propõe filosofia de alta complexidade – o pessimismo crônico, se não for fruto da depressão, é um disfarce engenhoso para a não ação. É preciso ir além da borda, ampliar o mundo, dar vazão à narrativa do eu traumatizado para vir à tona o sujeito regozijado:

Nosso corpo é feito de artérias e nervos, como se fosse um encanamento de uma casa que tem muitos canos por toda a parte. Se um daqueles chumbinhos tivesse atingindo uma artéria, eu teria morrido ali mesmo. Não daria tempo de chegar ao hospital. Teria sido o fim da cabra-cega.

A cabra-cega sempre volta à cena quando tenho desejo de morrer. Uma lembrança grudada em mim como carrapicho.

Os olhos vendados de alguém que tenta mudar o seu destino, mas sem saber o rumo. Como achar a saída de um labirinto?

Gracia Cantanhede oferece em seu livro excelente problematização ao tema do “apego ao dano”. A dor funda cáustica produz ressentimentos a granel. Não é o caso de Maria Divina. Ela faz parte de um contingente de seres que enfrenta os dissabores de uma realidade enfeitada de propostas alienantes. Seu diário de vivências tem como profissão de fé a escrita literária para denunciar, em seu ímpeto destruidor, a violência – esta toda vez acontece quando se rompe a barreira da alteridade, e a força física se impõe sobre o mais frágil ou indefeso:

[…] Minhas vizinhas achavam natural ter aquela vida miserável e injusta. A desculpa era passada de mães para filhas: o macho é o dono da mulher. E sempre fora assim. Uma questão cultural.

Eu sonhava estudar e me formar, para ter um bom emprego e dar a meus filhos melhores condições de vida. Não conseguia me acomodar, achar normal todas aquelas barbaridades.

Dei muitas oportunidades para que meu marido mudasse e se tornasse um ser humano melhor. Meu desejo era criar meus filhos sem guerras dentro de casa. Nunca tive sossego. Paz, artigo de luxo. Coisa tão simples e tão complicada. Se me perguntarem o que é mais importante, a saúde ou a paz, direi que uma depende da outra. Ambas estão no mesmo grau de importância.

Minhas amigas e conhecidas viviam naquela mesma situação. A diferença entre mim e elas era a minha revolta. Elas se calavam enquanto eu me rebelava. Um homem tratar a mulher como escrava sexual e doméstica? Era norma, então! Homem que se embebedava, golpeava mulher e filhos, e, mesmo assim, a esposa abaixar a cabeça e aceitar tudo? Conheci mulheres que tinham cheiro de medo.

A vida era tão bárbara que testemunhei muitas situações esdrúxulas. Um dia, passando por um beco que não costumava ter movimento, era atalho, vi o marido de uma vizinha fazendo sexo com uma jumentinha. Ele não me viu porque estava de costas. Saí correndo. Quando eu olhava para ele, depois, não conseguia entender sua mente doentia, mas o silêncio, naquele caso, fazia parte da lei local. Os homens podiam tudo. Intimamente, eu acreditava que um casamento só valeria a pena se houvesse respeito, dignidade e amor. Na minha cabeça, a mulher teria que reagir e não aceitar traição, ofensas, insultos e surras. E foi assim que um dia resolvi: iria abandonar tudo. Chegara a hora do basta!. Cansada de sofrer, resolvi mudar minha vida. Saí feito onda de mar revolto, arrancando tudo no caminho.

Para entender o papel desse sentimento vivido por Maria Divina – a indignação – na formação de um valor moral, será preciso, primeiro, supor que ele participa efetivamente dessa construção. E se a moral é a busca pelo bem, poderíamos concordar com Francis Hutcheson (1694-1746), que afirma haver duas fontes morais: o bem de si e o bem do outro. Isso significa dizer que para ser bom é preciso considerar a norma, mas é preciso também considerar os próprios sentimentos que se inclinam para o bem. Se por um lado a moral é definida como

um conjunto de deveres, a ética se referiria a uma inclinação e, por conseguinte, a uma busca por algo que faça sentido. Seria, portanto, correspondente à busca de uma ‘vida boa’. Logo, a pergunta moral seria “como devo agir”?, e a pergunta ética “que vida eu quero viver”?. Se a primeira dessas questões indica uma obrigatoriedade, a segunda aponta um sentido para se viver, ou algo que gere bem-estar.

A formação de valores morais ou éticos depende de algo além da tomada de consciência do dever: depende de uma motivação interna para a ação, chamada de sentimentos. Esses sentimentos mostram-nos que existe algo mais ou menos valorizado por cada um. A própria definição do que é um valor pode ajudar-nos a compreender melhor: um valor pode ser definido como um investimento afetivo que nos move ou que nos faz agir, segundo Piaget (1896-1980), e, portanto, toda pessoa, em suas relações consigo e com os outros, investe sua energia em determinadas ações ou em pessoas, ou ainda, em ideias.

A insubmissão de Maria Divina refere-se essencialmente a um conteúdo moral que estaria em jogo: a justiça (e a falta dela). Podemos inferir, à luz da indignação ética defendida por Paulo Freire (1921-1997), que a protagonista de Cabra-cega é movida por uma “justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência” (Pedagogia da Autonomia, 1996). Ao sofrer violências física, psicológica, moral, sexual e patrimonial, Maria Divina tem sede de justiça mas não tem fome de vingança, o que demarca para fins democráticos um belo exemplo de diferença entre ser justo e ser justiceiro. Se pudéssemos resumir a bandeira de luta da personagem, o justo seria todos nascerem com direito à plena cidadania, sem o risco de terem as suas vidas abreviadas pela miséria e pela violência.

Nesse sentido, penso o (in)dignar-se – o ato insurgente de se opor ao status quo que coage e criminaliza a pluralidade – como caminho para manter-se digna/o autenticamente. Esta tese de Maria Divina é sobre a luta pela Flor da Palavra, por uma linguagem moral e ética que fale menos de categorias e mais de conexões e empatias, até mesmo sobre aquelas que estão fora da ordem do discurso:

Você sabe que algo novo está para acontecer quando se descobre sem vontade de ver as mesmas pessoas, de falar sobre os mesmos assuntos; quando quer resumir tudo. Esse desejo de romper com a mesmice, de recomeçar.

Pode ser um movimento de criação, um rebuliço de dentro para fora. É preciso mudar o estabelecido e começar algo novo. Talvez aí esteja o segredo de tudo. Quando a construção é iniciada por dentro, em silêncio, sem meias palavras ou palavras inteiras. Alguma coisa que vai além do que se conhece e se vive. Essa alma de touro bravo irrompe para mudar, confirmando o inconformismo. É renovação. Uma alegria apocalíptica. É assim que o velho se despede, dando passagem para a mudança de pele. E dói. Um artesanato. Fio a fio. Ponto a ponto. No silêncio, sem testemunhas. Jogo mudo de palavras. Só o pensamento sabe. E deseja que dure.

Observamos que, para a personagem, não faz o menor sentido separar a mente do corpo, o interno do externo, pois o ser humano constitui-se numa unidade psicofísica “jogada” no fluxo da vida, no plano da linguagem e da ação. Ser autêntico, como deseja a protagonista de Cabra-cega, vai muito além da realização, com propriedade, de certos procedimentos lógicos. Significa ser capaz de expressar sentimentos, vontades genuínas, receios e anseios, bem como estar suscetível a sentir prazeres e dores; e isto, a rigor, pensamos ser um horizonte ainda distante de ser contemplado por seres mecanizados e embrutecidos.

Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) já tinha intuído o caminho de solução quando afirmava de modo direto que a “verdade” e o “bem” se convertem, isto é, um é o outro e vice-versa. Trata-se de ir à verdade da realidade e nela encontrar o bem. Informar a verdade que seja fonte de bem é o grande critério ético do existir humano. Não à toa, frisa Antonio Candido, a literatura atua em nós por ser “forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa do inconsciente”. Ainda para o crítico literário, essa função de atuar no desenvolvimento psicológico do ser humano deve-se ao fato de que “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (O direito à literatura, 1988).

Além de abordar os problemas que, inicialmente, dizem respeito ao tratamento dado à literatura que emerge das diferentes situações de violência, a obra de Gracia Cantanhede aponta para uma necessidade de proporcionar voz a sentimentos, identidades e sujeitos diferentes, em que a literatura, apesar de muitas divergências em suas definições, chama a atenção à política de solidariedade presente na narrativa; assim como os vínculos estabelecidos entre realidade histórica e ficção, com embates políticos e ideológicos presentes na narrativa do trauma, pode estar contribuindo a um jogo de elaboração de identidades individuais e coletivas integrado pela memória e história, realidade e ficção, subjetividade e testemunho, enquanto uma ação necessária ao enfrentamento do trauma vivenciado em países, como o Brasil, em que a violência ainda está condicionada à existência.

Cabe salientar, ao gosto do conhecimento popular, que jogar a toalha de vez significa entregar todos os pontos para a violência reinar. Representa experimentar na pele a vitória da distopia, o insuportável apagar da

esperança. Imobilidade, apatia, indiferença: eis a trilogia de um mundo descrente de fontes altruístas. Assim, aceitamos trocar a liberdade pela segurança, os princípios pelos interesses, o público pelo privado, o bem pelos bens. O interesse egocêntrico costuma ofuscar nosso otimismo solar e justificar um pessimismo aterrador que ceifa a graça do plantio em luta e busca pelo melhor da colheita. Nada tem o poder de desanimar “a intenção da semente”, como bem disse o cartunista e escritor Henfil (1944-1988). Em Cabra-cega, de Gracia Cantanhede, aprendemos a conjugar o verbo mariar – estender o fio de Maria Divina que nos conduz a todos para fora do labirinto:

É preciso acreditar em milagres, mas descobri que o inferno mora nas esperas.

Agora, estou cansada. As folhas do caderno acabaram. Restam apenas algumas linhas. É tarde, vou dormir. Minha alma está quebrantada pelo amor. A morte também é a maneira de Deus dizer que somos importantes para Ele. Porque nos ama, nos tira de cena. É esse amor que me acomete quando durmo. Amor e paz. O sono é a morte diária. Depois, a vida renasce como renasce o sol.

Rezar e dormir. É assim que a paz chega de mansinho. O palco deserto e escuro. Silêncio!

As pálpebras ficam pesadas, o corpo leve, flutuando.

Um manto diáfano desce e cobre meus olhos.

A noite é uma cortina, e, ao alvorecer, é possível que se abra para uma nova história.

Tem razão Maria Divina: a transitoriedade, mais do que subtrai, empresta valor ao que é belo. Nada parece ser eterno, o que reforça e relembra a transitoriedade não apenas da beleza que fruímos, mas de nós mesmos. À maneira de Chicó, célebre personagem de Ariano Suassuna (1927-2014), tudo o que é vivo está reunido num só rebanho de condenados, pois tudo o que é vivo, morre (O Auto da Compadecida, 1955). Tudo é transitório. E, se isso tira o valor da beleza da vida para alguns, para outros, como no caso de Maria Divina, implica em aumento desse mesmo valor. Diante da aleatoriedade da vida e da falta de sentido preestabelecido nela é que reside um dos seus maiores encantos e, justamente, a necessidade humana de construir algum sentido para os lances de dados do universo.

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Doutor e Mestre em Estudos Literários (Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG). Professor de Literatura Brasileira, com experiência em instituições públicas e privadas de ensino. Jornalista, com bacharelado em Comunicação Social (Centro Universitário de Brasília/UniCEUB). Escritor, poeta, ensaísta e crítico de lingu

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